quinta-feira, outubro 27, 2005

What’s The Story?

É nas pequenas coisas que vislumbro, em seus contornos resolutos, a irrefreável insubordinação do tempo. Não nos fatos grandiosos da vida, mas naquilo que nos compõe, forma o que somos, pequenos eventos que se sucedem, se compactam e integram nossas personalidades e caráteres, como tijolos indivisíveis em um imenso muro. Pois o tempo - seja retilíneo ou circular, como sustentam algumas teorias - insiste em marchar avante. E, creio, só o percebemos de forma cristalina refletido naquilo que amamos.

Pois, neste mês de outubro, dez anos completaram-se desde que o Oasis lançou (What’s The Story) Morning Glory?. Este texto é uma homenagem em forma de singela memória. Cabe sempre destacar a subjetividade das coisas: trata-se de um disco - mas o que são os discos senão trilhas sonoras de nossas vidas? E para cada indivíduo, sua alma e sua história.

A mim, é impensável qualquer aura de tolice ou futilidade nestas palavras. Como as coisas mais queridas para quem lê, quem escreve reverencia eternamente o disco e a banda, pensando na trajetória do tempo. O meu próprio tempo, o tempo do mundo. Dez anos é tão pouco e tão distante... As coisas queridas, verdadeiramente amadas, servem para isso: são tótens, marcadores fixos de nossa passagem pelo mundo.

Conheci (What’s The Story) Morning Glory? tardiamente, aos 16 anos. Superando a desconfiança que a adolescência sugere, percebi ali (como se pode perceber de qualquer outra forma) algo decididamente importante, que até hoje não consigo compreender completamente. Certo é que - e isso estou ratificando agora - não se tratava, como de fato não se trata, de um deslumbramento ou confusão típica da idade, tão pródiga de interrogações e equívocos.

Isto tudo é apenas um paralelismo, não fundamenta nada. Não estou julgando a arte contida no álbum - isso o farei, a quem interessar e sob pena de discordâncias, em resenhas especializadas, que não deixam muito espaço para sentimentalismo. Traço apenas a relação entre as coisas mais simples e aparentemente banais com a emoção que levamos conosco. E sempre que escuto (What’s The Story) Morning Glory? me vem à mente uma metáfora que talvez sequer me pertença: um velho homem, girando velhos vinis nas mãos, lembrando de como o tempo verdadeiramente passa.

E assim é, provavelmente ad infinitum, meu respeito, carinho e admiração pela arte e beleza contida ali. E, sobretudo, por quem - mesmo que com dissimulada sensibilidade - é capaz de oferecer isso aos outros.

segunda-feira, outubro 24, 2005

we are real people

O que um jornalista, um advogado, um dentista e uma psicóloga fazem na mesa de um bar irlandês?
Essa não é mais uma daquelas charadas engraçadinhas, mas poderia ser.

Na tardinha de 23 de outubro, logo após o referendo do sim ou não, realizamos a primeira reunião dos uotários membros deste blog. Por dificuldades de comunicação, sentimos falta de um, Fes Figueredo, que há muito já não dá notícias suas nesse espaço. No entanto, foi mencionado e, dada sua situação de ausente, comentado. Brincadeirinhas, objetividade e imparcialidade à parte, eu sinceramente achei muito bonito.

De questões como a função de um ídolo à beleza das mulheres russas, a conversa foi animada e, às vezes, atrapalhada por um trio de ingleses entusiasmados que gritavam Ole, ole, ole, ole, Inttter, Inttter! Eu não tive medo. Alguém aí teve?

Na despedida, votamos 2, teremos brevemente um novo encontro sim.

terça-feira, outubro 18, 2005

Quer texto, Jardel? Então toma!

Cometi isso há algum tempo atrás. Hehehehe...

"Semana passada, presenciei a morte de um passarinho. Faleceu eletrocutado no centro de Porto Alegre. Um lance de azar, infelizmente. O pequeno animal, voando poucos metros acima de mim, perdeu as medidas, voou errado e acabou enredando-se em dois fios ao mesmo tempo. O choque trouxe um barulho breve e agudo, e a bendita ave, que a milésimos antes parecia cheia de uma vivacidade aérea, atrapalhada e até divertida aos meus olhos, caiu fulminada no chão, seca como uma caixa opaca e sem aquela mobilidade contagiante, tão propícia aos animais alados. O burburinho urbano foi breve: o defunto por pouco não caiu na cabeça de uma senhora que passava. Não houve feridos, tampouco impressionados. A urbe estancou por não mais que dois segundos, e voltou a fluir normalmente após isso, como se quisesse apenas saber do que se tratava. Como alguém que perde a atenção pelo cenário após achar o utensílio que procurava".

[...]

No fim das contas, o passarinho ficou jogado ao meio fio da calçada, sugerindo uma eternidade de mansidão e sossego no corpo após o choque e a descarga. Todos continuaram seu trajeto em direção ao instável da vida. A única coisa definitiva naquela rua, naquele momento, era a transcedental afirmação do passarinho. Todos corriam em busca de algo, e na minha mente, só ele tinha achado uma situação definitiva. É o valor que há em parar quando todos correm: o inusitado sempre prende a atenção, mas havia mais do que isso no ar. Pelo menos foi a sensação que tive naquela hora.

Conclusão: ou estou ficando louco, ou mórbido. Or both. Ou não, sei lá...

quarta-feira, outubro 05, 2005

Texto para quem tem sono

Antes de qualquer coisa, quero advertir que o texto a seguir é chato. Chatíssimo. Mas a verdade é que deu pena de não publicar. Eu gostei. De qualquer modo, pode ser útil para uma noite de insônia. Aproveitem.

Eu adoro esse blog. Ele me motiva. Agora pouco li o comentário do Jardel (um dos maiores responsáveis pela minha busca árdua em entender como funciona o Brasil) e corri pro atalho do Word.

Pois bem, a idéia de aumentar impostos no intuito de melhorar o problema da má distribuição de renda no Brasil é nobre. O que chama a atenção na idéia (imaginada por muitos amigos da esquerda e direita brasileira) são basicamente dois fatos. O primeiro é que isso já foi feito pelo menos 73 vezes nos últimos cinco anos, no mínimo, e não melhorou nada em termos práticos. O segundo é baseado em exercícios básicos de lógica.

Exercício n°1 - Partindo do pressuposto que temos no Brasil uma carga tributária que consome (diretamente) 40% do que um trabalhador assalariado com carteira assinada recebe - uma das dez maiores do planeta - facilmente concluímos que a sonegação é altíssima. Aumentando os tributos - em espécie e valores - aumentamos os sonegadores, logo arrecadamos menos efetivamente. Mas como ganhar o mesmo cobrando menos?

Exercício n°2 - Tomamos o exemplo dos EUA. Os tributos consomem menos de 10% da renda, como arrecadam mais? Simples. Todos pagam. Mas como todos tem dinheiro? Simples. Todos têm emprego, formal ou informal. Como eles geram tanto emprego? Simples. Não existe tributação na produção, os principais empregadores nos EUA são pequenas e médias empresas que facilmente contratam funcionários sem maiores encargos sociais - motivo pelo qual a maioria das pequenas e médias empresas no Brasil vai a falência. Ahá! Mas se existe emprego informal também há sonegação? Pouca, pois a maior fonte de tributos é arrecadada apenas no preço final das mercadorias consumidas. Há pouquíssimos descontos em folha. Há uma reação em cadeia: mais pequenas empresas geram mais empregos e isso gera mais consumo, que é real fonte arrecadatória americana.

Exercício n°3 - Voltando ao Brasil, imaginemos que o governo decide aumentar impostos pra "acabar" com a má distribuição de renda. O nobre governo decide que apenas a classe média, os ricos e as empresas pagarão, pois quer privilegiar os pobres. Mesmo se acontecesse o milagre da honestidade nos nossos políticos e esses repassassem toda (digo, TODA) a grana para os pobres, ainda assim esses sairiam perdendo. Como? Vamos imaginar que nós do blog somos donos de pequenas fábricas: eu tenho uma fábrica de milho e ervilha enlatada, o Dani faz farinha de trigo, o Jardel faz laticínios, a Carol tem um aviário e o Felipe (lembram dele?) faz sal e açúcar refinado. O aumento de impostos vai ter um custo e vocês não querem demitir funcionários. O que vocês fazem? Aumentam o preço final do produto. Daí, o pobre vai ao supermercado e constata que o custo da cesta básica aumentou, digamos 5%. Esse aumento tem mais impacto no salário dele (R$ 200) do que no da classe média (R$ 1500). O governo socialista ferrou o pobre. Ah não! O governo proporcionou o Brasil Sorridente, claro, um excelente serviço social deprimeiromundo. Agora o pobre vai poder colocar aparelho ortodôntico depois de uma fila de oito anos.

O aumento de impostos só privilegia os políticos. Essa é a grana que eles usam pra comprar votos no congresso (como semana passada, na eleição da câmara), aumentar seus fundos de campanha, seus salários e verbas de gabinete. Todos eles fazem isso, pois sabem que é fácil pedir dinheiro pro povo, o povo é imbecil. Fazem isso abalizados pelo socialismo, o opiáceo intelectual.

terça-feira, outubro 04, 2005

Para onde vão?

Foi a paixão pela História, mais especificamente pelo período medieval, que me fez retornar às salas de aula universitárias. Um esforço burocrático, matrícula regularizada e lá estava eu rumando ao distante Campus do Vale da UFRGS, verdadeiro "jurassic park" do ensino superior em plena capital gaúcha. Mesmo atravessando cinco anos de jornalismo, raras vezes estive no Vale e isso originou um olhar atento e sempre curioso, sem o vício da rotina, sobre o local e suas pessoas.

E o que vi? Vejo todas as quartas-feiras pela manhã, em meu movimento rumo às discussões sobre visigodos, bizantinos, castelos e feudos, centenas - talvez milhares - de corpos jovens e cabeças pensantes (até prova em contrário). Deslocam-se por diferentes distâncias, todas relativamente grandes, a fim de enriquecer o espírito e o intelecto em cátedras na maioria interessantes, lideradas por mestres que, alguns anos antes, ouviam as palavras que hoje repetem a seus discípulos.

Todos têm de vencer o cansaço, os ônibus lotados, o calor e o frio, a falta de assimilação. Digam o que disserem, o estudo é profissão e alguns, dependendo da vontade do aluno, exigem mais do que muitos postos de trabalho de nossa "economia estável". Para cursar o ensino superior neste país brincalhão paga-se, e muito: seja a própria faculdade privada - que se reproduz aos borbotões na esteira de uma moral nacional deficiente e da noção perniciosa de que tudo, absolutamente tudo, até o ensino, é mercado -, seja no custo intrínseco ao ensino dito "gratuito", que é muito menos do que nossos impostos pagam. Os universitários, assim como tudo nesta coisa louquíssima de nome Brasil e sobrenome Modernidade, refletem a confusão: são poucos e são muitos.

A questão é que, por mais manca que seja nossa educação superior, na sua oferta ou na sua execução, temos muitos profissionais. Alguns demais, outros de menos. Mas os temos. E então, pergunto eu aos meus botões, para onde vão? Porque se temos um país ainda ridiculamente zonzo é porque não temos quem o ajude, parece-me. Mas eu os vejo todas as quartas pela manhã, banhados no sol matutino da primavera porto-alegrense...

Conheço engenheiros que rejuntam muros na Austrália, economistas que calculam in-loco o caixa de lanchonetes em Nova York, psicólogas-faxineiras de banheiros na Inglaterra e jornalistas vendedores de doces nas parcas redações brasileiras... E aquela gente que se apressa em pegar o ônibus, junta compêndios de fotocópias e perde madrugadas lendo textos imensos ou fórmulas complicadas? Fazem o quê, depois, na vida real? Trabalham para quem? Trabalham pelo quê?

domingo, outubro 02, 2005

Lembrança do Senhor do Bonfim


Contam que havia, em uma cidade um pouco longe daqui, um senhor de memória extraordinária que costumava decorar os sonhos dos outros. Ele nunca teve um sonho só seu, pois temia ver sumir a lembrança dos sonhos de seus vizinhos, parentes e amigos ao ceder espaço aos seus próprios.

Aquele senhor, após longos anos, tornou-se famoso por onde passava. Era guardião de centenas de desejos e, no entanto, não tinha nenhum. Certa vez, o senhor que nunca havia feito um pedido sequer adormeceu e sonhou. No sonho, ele recebia o dom de realizar os pedidos de todos os seus conhecidos. Em uma alegria sufocante, pôs-se a procurar na memória o primeiro pedido que ouviu de um amigo. Lembrou-se do garçom, homem muito amigo de conversas, e do dia em que lhe entregou seu maior sonho, que era... O senhor havia completamente esquecido o que o garçom tanto queria. Mas, tudo bem, deixou de lado. Pensou em sua irmã, mas nada. Esquecera de cada sonho. Não sobrara um pedido qualquer em sua memória a fim de ser realizado, nem o seu mesmo, no qual nunca havia pensado. Pensou no que estaria desejando sem saber...

Ao acordar, o senhor percebeu que precisava fazer alguma coisa. Imagine se um dia recebe mesmo o tal dom! Poder realizar qualquer pedido, mas estragar tudo por perder a memória! Isso não.

O senhor saiu às ruas à procura de cada sonho. Amarrou, no braço de todo aquele que lhe revelou algum sonho, uma fita de cor específica. Cada cor indicava a intenção do pedido: este quer amor; aquele, saltar de pára-quedas. E foi assim até o último de seus dias. O senhor, que desejava (finalmente) morrer para, então, feito santo ou gênio, realizar os desejos das pessoas na Terra, faleceu logo depois de fazer seu lanche em um restaurante chamado Bonfim. Após investigações médico-policiais, conheceu-se o veredicto: o senhor havia morrido por alta dosagem de sonhos. Foram interrogados todos os suspeitos, desde o dono do restaurante ao guardador de carros, do vizinho a seu tio da cidade vizinha. Fato de interesse, e possível pista relevante para desvendar o caso, foi que cada um dos interrogados usava uma fita no braço, mesmo que de cores diferentes, todas caracterizavam-se por três nós bem apertados, o que tornava todos, de alguma forma, cúmplices.

Pouco tempo depois, as pessoas daquela cidade começaram a receber graças. Algumas se tornaram milionárias, outras se casaram. Muitos emagreceram e outros tantos tiveram sucesso em concursos e competições. A cidade cresceu e trocou de nome, passou de Trevos do Oeste para Afortunada do Norte. As investigações acerca daquela morte estranha e repentina cessou, pois até os presidiários da cidade foram soltos e os juizes tiraram férias para sempre.

Dizem, e por isso sei, que, até hoje, os filhos (dos filhos dos filhos) dos amigos daquele senhor amarram (com os três nós) as fitas (de muitas cores) nos braços de quem quiser sonhar, e contam a história da incrível lembrança do senhor que morreu de tanto sonho no Bonfim.

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