sábado, novembro 05, 2005

Hérnandez

Hérnandez tinha 10 anos. Brincava entre as casas humildes da humilde Nicarágua. Meninos como ele corriam para lá e para cá, ajudavam os mais velhos, trabalhavam com os pais nos intervalos das brincadeiras. Hérnandez tinha o sangue índio correndo em suas veias. Sangue desprezado pelos brancos que chegaram há pouco e foram dando ordens, escravizando, estuprando. Matando.

Hérnandez tinha paixão por automóveis. Vira pouquíssimos circulando por sua vila, mas os amava. Projetava toscos carros em madeira e latão, para brincar com os pequenos vizinhos e amigos. Guiava velozes máquinas por entre os vales de sua imaginação e chegava até a Cidade Sagrada de seus ancestrais, muito longe, inatingível pelos pés humanos. O menino viajava a distância infinita e invencível em seu carro alado e lá reencontrava os avós e os entes mais queridos que já haviam chegado ao destino.

Hérnandez nunca vira seu próprio rosto. Um dia, um homem alto e de longos cabelos amarelos apareceu sorrindo e pediu que sorrisse. O barulho assustou o menino, que teve ímpetos de sair correndo. O homem pediu que esperasse e lhe estendeu a mão, na mão um papel, no papel a imagem: Hérnandez. Outro sorriso, desta vez sincero.

Hérnandez foi encontrado debaixo de algumas palmeiras que cobriam sua casa, o corpo franzino imóvel e sem a alegria de antes. A pequena foto ao lado, sorridente e sem cor, velava nossa criança. O jovem índio não pudera ao menos lutar: um risco de balas lhe crivara o peito. A guerra trazida pelo mercado chegara, punição horrenda e extrema para quem se recusava a dançar a música que o capitalismo toca. Creio que Hérnandez sequer tenha ouvido falar nisso. A Nicarágua consumiu energia dos vencedores. Os vencedores engoliram vidas nicaragüenses e finalmente, tão somente então, a Shell pode vender combustível para os humildes automóveis da Nicarágua.

Hérnandez agora viaja, em alta velocidade, rumo à Cidade Sagrada, e tem o consolo de ser o piloto mais hábil do céu tropical.

Comments:
=)

=(
 
Eu gostei do teu texto, e também da tua sensibilidade. É terrível isso. Quanta tragédia esse mundo abriga...

Abraços.
 
Que bom que tenham gostado e se incomodado um pouco. É pra isso que servem os textos, penso eu.

Carol, tu poderias dar uma entrevista já falando como psicóloga? É que eu estou preparando uma matéria para o site do qual falei nos what's do texto abaixo e preciso ouvir alguém da área. Acho que seria bacana.

É sério, me responde que eu vejo como podemos fazer.

Abraço.
 
Eu também gostei do texto. Mas não acho que problema seja "os bons" contra "os maus".

O problema é o homem.

É por isso que eu prefiro os bichos.

Abraços
 
eu não prefiro os bichos.

e sobre falar como psicóloga, dependendo do que tu quer, acho que não tem problema. só que como não me formei, não tenho registro do conselho, mas não sei tu te importa com isso.

beijos.
 
Não sugeri um confronto "os bons" contra "os maus", meu caro Eduardo. Pode parecer, mas não é. E tô longe de fazer isso, já que compartilho da tua opinião de que o problema é o Homem. Seria muita ingenuidade.

Carol, absolutamente não me importo com a questão do registro, mas é tu quem deves ponderar sobre a questão, já que vai ser divulgado e não sei se não dá problema responder como psicóloga sem o tal registro.

De qualquer forma, a matéria que estou preparando é sobre racismo, mas, dito assim, não fica bem claro o que eu gostaria de saber de uma psicóloga. Vê o que tu achas da questão de falar sem o registro e depois vemos se tu poderias me ajudar. Na pior das hipóteses, tu poderias me recomendar alguém para ser entrevistado.

Abraços.
 
Eu posso te recomendar alguém sim. Acho que eu não me sinto bem brincando de psicóloga antes da hora, só se tu me entrevistar depois de 27 de janeiro. posso te dar email de colegas meus.

beijos
 
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